quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

"Teorema" - uma leitura perversa da tradição

      Terese Cristina Cerdeira, autora dum ensaio crítico sobre o "Teorema" de Herberto Helder, afirma que o conto parte duma leitura perversa, ou duma releitura da tradição, tanto histórica como a mítica. A perversão é, aliás, a palavra que, segundo a estudiosa, circula mais a propósito na apreensão deste conto. E, realmente,  é esta mesma perversão que se sente ao longo da leitura e que está presente no texto sob várias formas. 
        A primeira e a mais visível é a perversão espácio-temporal (cronotópica). Esta revela-se na «inadequação de a cena histórica do século XIII ver-se inserida - mas não atualizada será preciso insistir - num cenário híbrido de camadas de passado e indícios do presente». O cenário em que se desenrolam os acontecimentos possui umas marcas que destroem a coerência temporal do conto. Refiro-me às anacronias presentes no texto, como por exemplo o castelo do rei (sec. XIII) que tem uma «janela manuelina»; «a monstruosa igreja do Seminário» que assoma na praça, na qual se encontra também «a estátua municipal do marquês de Sá da Bandeira»; a presença do klaxon, dos automóveis ou da Barbearia Vidigal.
      O outro tipo de perversão detectável no conto tem a ver com o modo de narração que ele representa. A perversão encontra-se aqui em dois planos. Por um lado, a história heróica da vingança contra o crime da morte de Inês de Castro (que coloca sempre D. Pedro na posição central do herói) ganha aqui um outro ponto de vista por ser narrada pelo próprio matador de Inês. Por outro lado, o conto apresenta-nos uma «situação-limite» em que o eu narra num tempo que dura antes, durante e depois da própria morte. Segundo Teresa Cristina Cerdeira a perversão aqui tem a ver, mais do que com a verossimilhança, com «o próprio estátuto filisófico da linguagem», uma vez que ninguém é capaz de narrar a própria morte. «(...) a morte é o único ato que não passível de ser narrado, porque está justamente fora da linguagem», explica Cerdeira. No entanto, o conto, no mometo da morte do narrador, não desloca a observação da cena para um outro, mas fá-la ser narrada do ponto de vista daquele que morre. Contudo, como justamente observa a estudiosa, não se trata de mergulhar no maravilhoso ou no fantástico. «O conto (...) mantém até certo ponto suas balizas claramente realistas, e é de dentro delas que se constrói a perversão do realismo, quer por efeitos de inadequação temporal, espacial, ou actancial».
      O conto apresenta também uns «degraus da desmontagem das expectativas éticas, morais e religiosas», que revelam uma série de perversões axiológicas: o bem e o mal, Deus e Diabo, o céu e o inferno, a vida e a morte. Nestes pares dos valores opostos, os primeiros elementos (o bem, Deus, o céu, a vida) são associados com a «insignificância», a «estupidez» e com a «perdão a todas as ofensas», representadas pela figura da esposa do rei, D. Constança, desrespeitada pelo narrador.
      Além disso, o que o conto parece celebrar é nada mais que «o júbilo erótico de uma experiência a três».

«Suprema perversão de um eu que ousa dizer o seu desejo, que ousa proclamar o seu amor, que é amor do amor do outro e amor pelo outro. A cena mítica de Pedro devorando o coração do assassino de Inês já não é, portanto, um grito de vingança; é uma espécie de triplo orgasmo, ato salvífico em sendo mortal, em que o narrador-amante se vê para sempre dentro do corpo do rei, devorado por ele, misturado a  seu próprio corpo,  acolhido em suas  entranhas,  como o rei  estaria  também para sempre dentro de Inês  e ela dentro dele,  pela conseqüência do ato generoso de um matador que conseguiu levar a amada e a si próprio para o terreno do “incorruptível”».
 Enfim, a eternidade, que parece ser um dos motivos principais do conto, constitui uma vitória perversa da vida sobre a morte, pois atingida através duma consagração da morte. É uma eternidade que parece ser um modo de driblar a força de Deus que a negou ao homem «para que este não o ameaçasse com sua perfeita semelhança».


*todo o grifo é meu

CERDEIRA, Teresa Cristina (2008) "Teorema: uma lógica moderna de sujeitos desejantes", Abril (Revista do Núcleo Estudos de Literaturas Portuguesas da Universidade Federal Fluminense, Niterói), vol. 1, nº 1, pp. 52-57.
http://www.uff.br/revistaabril/Revistas/006_TereseCerdeira.pdf (09.12.2010)

HELDER, Herberto (1977) "Teorema", Passos em Volta. Lisboa, Assírio&Alvim.

2 comentários:

  1. O artigo de Teresa Cerdeira é um bom contributo para a compreensão do conto. A sua argumentação é clara, sólida e convence-me quase sempre. Acho que sua ideia de perversão do realismo e como ela serve o propósito de eternizar a história explica bem algumas das opções narrativas, as tais estranhezas, incoerências ou jogos do autor. Há só duas coisas que não me convencem tanto que são a questão da perversão axiológica e a do júbilo erótico. Em relação à primeira, sem dúvida que o conto toca o eixo do bem e do mal, mas creio que o refere para se destacar dele se colocar num plano além dele. E é aqui que me parece que a discussão que tivemos na aula sobre o conceito de encenação e de espectáculo pode propor uma reposta melhor, até mais em conformidade com o título do conto. O que achas?

    O segundo aspecto, o do júbilo erótico, ou da perversão erótica, parece-me forçado e não vejo no texto sugestão disso. Em que partes do texto se apoia autora do artigo para provar esta interpretação? E tu o que achas?

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  2. Sim, sinceramente a questão da perversão erótica também não me convence muito mas achei-a interessante como mais uma possibilidade de interpretação, por isso é que a coloquei.

    Já a segunda questão, a da perversão axiológica, convence-me mais. Não sei se o conto de facto parece colocar-se além do bem e do mal, mas para mim é certo que se rejeita aqui, ou pelo menos se põe de lado, a ideia de Deus e os valores que se relaciona com Ele. E acho que o conto até opta, de certo modo, pelo plano do mal, pois diz que o que fizeram (o narrador e o rei) pertence ao «espírito demoníaco».

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