quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Uma transformação - em quem ou em quê?

O processo de transformação do protagonista pelas experiências da guerra em África é bastante sublinhado ao longo do discurso. O traço mais marcante é a estrutura, por assim dizer, circular do livro. Quer dizer, a narrativa é construída de modo que o romance começa com uma esperança explícita da família de que a guerra torne o protagonista um homem, e acaba com um manifesto de desilusão das tias. Vejamos o final do primeiro capítulo:
«As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas (...) e completavam a jaculatória designando com a colher do açúcar fotografias de generais furibundos, falecidos antes do meu nascimento após gloriosos combates de gamão e de bilhar em messes melancólicas como salas de jantar vazias, de Últimas Ceias substituídas por gravuras de batalha:
- Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.
Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta (...).» (Antunes 1984: 13).

E logo o final do último capítulo:
«As tias acenderam o candeeiro para me observar melhor, e a luz revelou subitamente tapetes de Arraiolos (...). Uma bengala de bambu formou um arabesco desdenhoso no ar saturado da sala, aproximou-se do meu peito, enterrou-se-me como um florete na camisa, e uma voz fraca, amortecida pela dentadura postiça, como que chegada de muito longe e muito alto, articulou, a raspar sílabas de madeira com a espátula de alumínio da língua:
- Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer.
E os retratos dos generais defuntos nas consolas aprovaram com feroz acordo a evidência desta desgraça.» (Antunes 1984: 210-211).
Afinal de contas, a guerra não trouxe nenhum proveito, não tinha sentido nenhum. Provocou  apenas profunda e inapagável desilusão. Porém, enfim, a guerra transformou o protagonista:
«Porque foi nisto que me transformei, que me transformaram, Sofia: uma criatura envelhecida e cínica a rir de si própria e dos outros o riso invejoso, azedo, cruel dos defuntos, o riso sádico e mudo dos defuntos, o repulsivo riso gorduroso dos defuntos, e a apodrecer por dentro, à luz do uísque, como apodrecem os retratos nos álbuns, magoadamente, dissolvendo-se devagarinho numa confusão de bigodes.» (Antunes 1984: 165).
Será esta criatura, morta durante a vida, «um homem» esperado pelas tias?

Romance de formação?

Espero que concordem comigo que o romance Os Cus de Judas conta a vida do protagonista desde a infância até o momento do discurso em que ele executa o seu discurso. Não a conta, claro, de modo cronológico, mas, muito à maneira pós-moderna, de forma discontínua, fragmentada, não linear, dispersa. No entanto, é possível reconstruir a trajectória da sua vida. Isto trouxe-me à memória o conceito de Bildungsroman, isto é: “romance formativo ou romance de formação”; em ingl., coming-of-age novel ou apprenticeship novel (segundo E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia). Parece-me que o livro de Lobo Antunes é, de certo modo, um tipo de Bildungsroman. A definição corresponde à ideia geral da narrativa:
«O protagonista é uma personagem jovem, do sexo masculino (...), que começa a sua viagem de formação em conflito com o meio em que vive, determinado em afrontá‑lo e recusando uma atitude passiva; deixa‑se marcar pelos acontecimentos e aprende com eles, tem por mestre o mundo e atinge a maturidade integrando no seu carácter as experiências pelas quais vai passando; (...) sofre pelo imenso contraste entre a vida que idealizou e a realidade que terá de viver; o seu encontro consigo mesmo significa também uma compreensão mais ampla do mundo. (...) O romance organiza‑se pela aparente ausência de um princípio de unidade: a narrativa articula‑se em função da viagem espiritual do protagonista e não impõe aos diversos episódios uma sucessão lógica visível. Tem um carácter aberto, não conclusivo que possibilita o surgir de obras de continuação (...). A plasticidade da forma adequa‑se à multiplicidade de experiências necessárias à maturação do herói.» (também segundo E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia).
O romance de Lobo Antunes constitui para mim um moderno Bildungsroman, modificado pelos traços do discurso pós-moderno. A maior diferença entre o romance de formação clássico e o moderno consiste, na minha opinião, em que o encontro do protagonista consigo mesmo já não significa a «compreensão mais ampla do mundo» ou, talvez, o protagonista moderno nunca encontra si mesmo?

domingo, 24 de outubro de 2010

A-Be-Ce-dário...

Pensaram uma vez porque os capítulos n'Os Cus de Judas não têm números, como é de costume, mas são enumerados pelas letras de alfabeto?

Segundo Ricardo Turnes: «Os capítulos são as letras do alfabeto, e o fio condutor leva-nos por todos os recantos da recordação: eis aqui a vergonha na sua totalidade, contada em todas as letras, para que não haja dúvidas, para que nada fique esquecido.» Será isso ou foi outra a intenção do autor? Tanto mais que a construção, ou melhor, o número dos capítulos no livro parece pensado de tal modo que aborde todo o analfabeto, de A a Z. Ou, talvez, não houvesse nenhuma intenção mas um simples capricho? ;)

O texto inteiro do comentário de Ricardo Turnes encontra-se aqui: http://alawebpage.blogspot.com/2007/08/ricardo-turnes-os-cus-de-judas.html

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Quem es tu, Sofia?

Quantas mulheres aparecem n'Os Cus de Judas de António Lobo Antunes? Algumas. Quatro, pelo menos. Obviamente, o enredo das mulheres na vida do narrador não é o motivo central da obra (aliás, qual o é? a guerra? o narrador em si?), mas não é possível ignorar a presença e importância delas.


Em primeiro lugar, há essa mulher misteriosa do bar - a interlocutora silenciosa do narrador, a destinatária do todo (ou, melhor, quase todo) o monólogo dele, a ouvinte muda e paciente.
Em segundo lugar, aparece a mulher (no tempo presente do discurso já ex-mulher) do protagonista. Também não se sabe muito dela. Apaixonaram-se, casaram, logo ele foi para África. Divorciaram-se provavelmente quando voltou.
Não se deve esquecer da filha do narrador, talvez o seu único amor verdadeiro. Nasceu durante a residência do pai em África e tornou-se o objecto constante dos pensamentos e das saudades dele.
Afinal, a mulher nº 4 - a que desperta a minha maior inquietação e curiosidade. Aparece no capítulo S, logo na primeira frase, sob a forma duma apóstrofe «Sofia, eu disse na sala Volto já, e vim aqui, (...) para falar contigo» (Antunes 1984: 153). Já que durante todo o discurso anterior o narrador dirige-se à mulher do bar, não admira que no início o capítulo S faz-nos pensar que finalmente conhecemos o nome da misteriosa companheira. Não admira também a confusão do leitor quando descobre que Sofia, a que o narrador dedica todo o capítulo, é o nome duma negra com que o protagonista tive uma relação em África. Nos braços dela o homem encontrou um tipo de refúgio, abrigo, uma certa segurança e esquecimento. Por isso guarda uns sentimentos carinhosos a ela. Havia entre eles um entendimento sem palavras, perante ela o homem angustiado e farto da guerra sentiu-se à vontade, sentiu-se consolado. Porém, enfim, o narrador conta-nos a sua reacção desumana e cínica da notícia sobre o prendimento dela pela PIDE.

Perturba-me a questão da função de Sofia na narrativa. Porque aparece no texto? Porque só num único capítulo? Porque surge assim, de repente, e na forma da interpelação directa? Porque nessas circumstâncias (o narrador abriga-se na casa de banho tendo deixado a mulher do bar na sala, senta-se na sanita e olhando para si no espelho fala com Sofia, como se falasse com a sua consciência)? E que significa essa "parábola de Sofia"?

sábado, 16 de outubro de 2010

«(...) é uma ternura ver nascer um livro...»

Não é por acaso que o autor da citação do início do último post é António Lobo Antunes, pois é este o escritor com o qual começámos a nossa viagem pelas tendências actuais da Literatura Portuguesa. Na última aula o Professor mostrou-nos uma entrevista de Rodrigo Guedes de Carvalho com António Lobo Antunes, efectuada em Dezembro de 2003 na televisão SIC.

A entrevista, realizada por ocasião de lançamento do livro Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo, é muito vasta e cheia de conteúdo que abrange vários assuntos. Cada um encontra algo interessante para si. 

Para os que gostam saber os pormenores da vida pessoal dos outros, o escritor (naquela altura de 61 anos) partilha as recordações na sua infância, adolescência e os inícios da sua escrita; as emoções ligadas à velhice dos seus pais e à perda dos amigos que faleceram; as experiências intímas da guerra em África.

O motivo da guerra é, aliás, especialmente interessante, sobretudo de ponto de vista dos largamente concebidos estudos culturais. As experiências da África, embora sem dúvida horríveis e traumáticas, não deixaram no António Lobo Antunes sentimentos de ódio ou desprezo para com esta terra e os povos que a habitam. Tem pena das cidades destruídas de que particularmente gostou. Acha injustificada a interpretação do colonialismo e da guerra como a tentativa de impôr aos povos bárbaros tal chamada civilização, já que os africanos tiveram e têm a sua própria civilização e modo de ser. Reconhece o valor da cultura africana e respeita a sua variedade e diversidade. Apresenta uma atitude sábia perante a homosexualidade e o racismo que percebe como o desconhecimento. Deste modo, as suas opiniões inscrevem-se na corrente pós-moderna vigente, mostrando o seu autor como homem culto, erudito e tolerante.

Isto fica provado também quando analisarmos as reflexões de António Lobo Antunes sobre a arte da escrita, a que é dedicada a maior parte da entrevista. O escritor entreabre as portas da sua "oficina" da escrita, deixando-nos espreitar um bocadinho o seu processo criativo . É mesmo uma "oficina", já que Lobo Antunes está longe de perceber a escrita de modo romântico como um dono e efeito duma inspiração divina. Aproxima-se antes à corrente iniciada por T.S. Eliot que compreende a escrita como uma produção, um ofício que tem a sua própria técnica e que precisa de muita práctica. Como diz o próprio Lobo Antunes: «Não há talentos», é só método, técnica e disciplina que se tem de aprender para poder escrever bem. Atrás de cada livro, por muito espontâneo e natural que pareça, está o trabalho duro do escritor, que é preciso decifrar para perceber a técnica dele. Trabalho duro, mas agradável, porque o autor continua a ter uma relação muito íntima com a sua escrita, vive-a, mas faz o esforço de, depois de acabar, esquece-la para poder escrever outra coisa. Curioso que, mesmo assim, a escrita é sempre uma coisa independente do seu autor e, segundo António Lobo Antunes, nunca se sabe o que se vai escrever.

A escrita é para ele também o processo de aprendizagem, não só das coisas de que escreve, mas também aprendizagem no sentido de tornar-se mais maduro, de fazer progesso. Por isso «a pessoa que tu eras quando escreveste já não és». 

Muito característica é, para mim, a sua posição quanto à relação entre a ficção e a realidade. António Lobo Antunes fala sobre um pacto de incredulidade que consiste em aceitar pelo autor e pelo leitor que o que está escrito não é verdade, mas vão fingir que a é. Este conceito de Lobo Antunes assemelha-se muito com a ideia de Umberto Eco, apresentada no Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), e que o escritor italiano chama de "pacto da suspenção de incredulidade". Outras afinidades entre os dois escritores pode-se vislumbrar em opinião de que o livro contém instruções para o seu leitor e que o autor tem de ensinar os seus leitores a lerem-no. Esta concepção traz à mente o conceito do autor-modelo que constitui, segundo Eco, uma estratégia da obra, um modo de a usar que o leitor-modelo deve realizar.

A propósito disso surge a última lição de Lobo Antunes, nomeadamente significativa em contexto deste blogue, que se refere à arte de ler. Como os leitores, devemos deixar a nossa tendência de adaptar os livros às nossas experiências e às nossas vivências. «(...) temos que partir para os livros com os olhos desprevenidos, temos que partir com uma certa virgindade no olhar», ensina o escritor português.

O texto íntegro da entrevista disponível na página: http://www.ala.nletras.com/entrevistas/SIC122003.htm .

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Nota introdutória...

«Saber ler é tão difícil como saber escrever.»
António Lobo Antunes

 À primeira vista a afirmação citada pode estranhar. Enquanto a maioria das pessoas que pelo menos uma vez na vida tiveram de escrever uma coisa à sério serão de acordo que escrever não é nada fácil, agora a leitura, por sua vez, parece a todos muito menos exigente. Contudo, esta frase de António Lobo Antunes é para a autora deste modesto blogue recém-nascido profundamente verdadeira. Para ler, mas ler de maneira consciente e apropriada, e não automática, é preciso ter uma sabedoria e habilidade, bem como certa prática. 

Este blogue surgiu como um modo de aproveitar, aprofundar e ampliar o conhecimento ganho durante as aulas de Tendências Actuais na Literatura Portuguesa. Por isso, é claro que vai tratar da literatura portuguesa contemporânea, tendo como base o programa da disciplina. O blogue constitui também o exercício de escrever, já que o Professor ultimamente tem falado muito sobre a importância da regularidade e da prática  na escrita. Porém, para a autora deste blogue, que se afirma ser uma leitora-amadora (no sentido ambíguo da palavra) ainda nos princípios do seu caminho da aprendizagem e aperfeiçoamento da sua leitura, é tanto a medida para aprender a escrever, como também o meio de aprender a ler.

Com esperança sincera de conseguir alcançar os seus alvos, desejando a si mesma boa sorte e aos potenciais leitores (se houverem) boa leitura, subscreve-se abaixo,

sempre humilde,
Leitora