domingo, 21 de novembro de 2010

A estrutura da diegese

O esquema da estrutura do monomito elaborada por Campbell que apresentei na minha entrada intitulada A estrutura da obra não é um esquema perfeito para mostrar a estrutura de Os Cus de Judas. Serviu-me apenas de exercício para tentar interpretar a obra de Lobo Antunes segundo as categorias das histórias antigas. Tentei fazer o novo esquema, mais adequado a esta obra, que apresento acima. Utilizei o esquema de Campbell como ponto de partida para o novo esquema, porque, como provei na já mencionada entrada anterior, a história de Os Cus de Judas dá para enquadrá-la nas categorias do primeiro, só que algumas mudanças são necessárias.

Sobretudo, apagei os termos que aparecem no esquema do monomito e que não são relevantes para o esquema de Os Cus de Judas, como "Ajuda sobrenatural", "Mentor", "Adjuvante" e "Dádiva de Deus". Apagei também "Reconciliação", uma vez que na minha opinião não acontece na obra.
Em segundo lugar, mudei algumas das categorias. Em vez de "Revelação" coloquei "Desilusão" porque é isto que ocorre ao protagonista. O "Abismo" não significa "morte & renascimento", mas, sim, uma morte sem renascimento. Porém não se trata da morte física, por isso substitui-a por "Morte emocional" ou espiritual. Enfim, à categoria de "Regresso" adicionei uma descrição que sublinha a transformação do protagonista. O regresso, porém, não significa o fecho do círculo da viagem, já que a realidade à que o protagonista volta, ou seja, o Conhecido, já não é para ele a mesma da qual partiu. Devido a viagem e transformação que ocorreu, o protagonista depois do regresso vê o Conhecido do outro ponto de vista. A sua percepção ficou distorcida, o que há de mostrar uma linha ondulada no limiar do Regresso e do Conhecido.
Consequentemente, o protagonista não pode voltar ao ponto de partida, porque aquele mundo, aquele Conhecido, já não existe para ele. Por conseguinte, a estrutura não constitui um círculo completo. Num ponto depois do Abismo a trajectória da viagem curva-se e molda do modo diferente, formado sob a nova óptica, ganha como o efeito da transformação do protagonista.

É preciso sublinhar que o esquema refere-se apenas à diegese, quer dizer à história na sucessão cronológica dos acontecimentos, e não mostra a estrutura da obra. Esta deveria tomar em conta também o discurso, ou seja o modo de narração, que na obra de Lobo Antunes é muito complexo. Eu tentei apenas assinalá-lo por colocar no esquema a linha cinzenta, que começa algures na trajectória depois do Regresso e acompanha o esquema da viagem mas seguindo o seu próprio caminho, ora se aproximando ora se afastando da trajectória da viagem. Estas aproximações e afastamentos fazem com que a narração siga a viagem de várias perspectivas, abundantemente exploradas pelo narrador, por exemplo através do processo de anamorfose.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

(Informações complementares)

Quero adicionar algumas informações e indicações que me parecem interessantes e relevantes quanto a dois dos meus posts: o último, sobre o esquema de Campbell, e aquele que trata do Bildungsroman, já que ambos se referem, de certa forma, à estrutura d'Os Cus de Judas.

A leitura dum ensaio crítico de Sofia Tavares intitulado Representação e Memória Cultural: o Trauma da Recodração e a Nostalgia da Memória, lendo Os Cus de Judas de António Lobo Antunes (disponível aqui) traz umas indicações interessantes para utilizar na interpretação do livro à luz das categorias de Transformação e de Regresso do esquema de Campbell. Vejamos o trecho seguinte:
«(...) o sujeito sofre um processo de metamorfose passando de opressor a vítima e de vítima a vazio. Esta metamorfose impede o sujeito de se identificar com o passado e com o presente, vivendo para sempre na relação imemorial entre o que não pode ser dito e o que pode, entre o inetrior e o exterior da linguagem. O sujeito mostra-se consciente desta transformação que resulta numa inadaptação ao passado-presente do regresso* (...)»
Revela-se, então, que a transformação que ocorre no protagonista não é somente a nível do seu carácter ou da sua atitude perante a realidade, mas também a nível do seu estatuto - do opressor passa a ser uma vítima, para depois assumir «uma atitude passiva, tornando-se um agente do inumano» (Tavares).
A citação comprova também que a Reconciliação não ocorre, uma vez que depois da metamorfose o protagonista fica inadaptado «ao passado-presente do regresso».

Ora, quanto ao post de Bildungsroman, escrevi lá:
«A maior diferença entre o romance de formação clássico e o moderno consiste, na minha opinião, em que o encontro do protagonista consigo mesmo já não significa a "compreensão mais ampla do mundo" ou, talvez, o protagonista moderno nunca encontra si mesmo?»
O ensaio de Sofia Tavares trouxe-me uma das respostas possíveis:
«O discurso do sujeito em Os Cus de Judas, é um discurso envolto num sentimento de vergonha, vergonha essa que transporta o sujeito para um sentimento de culpa. (...) O que a vergonha descobre é um sujeito que afinal se descobriu a si próprio* (Levinas, 1982: 87), fica assim consignado a algo que não pode assumir e que tem origem na sua própria intimidade.»
 Tavares propõe, então, uma interpretação da formação do protagonista que acaba em ele conseguir encontrar-se consigo mesmo, descobrir-se a si próprio, contudo, esta "descoberta" o repugna, ele rejeita assumir o que encontrou, ou seja, rejeita assumir a sua própria pessoa. Eis de que pode provir a "deformação do romance de formação" nesta obra de Lobo Antunes.

* Todos os destaques nas citações são feitos por mim.

A estrutura da obra

Campbell, Joseph (1949): The Hero of a Thousand Faces. Tradução de José Carlos Dias. Obtido via http://www.brainygamer.com/




Eis o esquema da estrutura fundamental dos mitos importantes de várias partes do mundo, o tal chamado "monomito", elaborado por Joseph Cambell. A pergunta é: como (se de alguma maneira) o esquema é relevante quanto ao livro Os Cus de Judas de António Lobo Antunes?

Tratemos a história contada pelo narrador do livro como uma «Viagem do Herói» e tentemos ordenar os acontecimos consoante as categorias do esquema.
Conhecido - Portugal; é a realidade em que o personagem cresceu, o mundo que conhece.
Desconhecido - África; um lugar completamente desconhecido e alheio ao protagonista, diferente espacial, cultural e socialmente. A realidade da guerra também era lhe desconhecida até a partida para a guerra.
Apelo à Aventura - De certeza aparece um certo apelo à aventura, ou seja à partida para a guerra, tanto da parte do estado, como da parte da família, nomeadamente das tias. Há também um certo dever condicionado pela história ou pela tradição familiar (os retratos dos antepassados militares do narrador que o olham da parede como se apelassem para que ele continuasse a tradição).
Limiar - a entrada à realidade da guerra em África constitui a transgressão do limiar a partir da qual começa a transformação do protagonista.
Desafios e Tentações - A estadia em África é sem dúvida o tempo dos desafios e tentações: a luta por sobreviver, o medo e o terror, a presença constante do perigo e da morte, as tentações sexuais.
Abismo (Morte & Renascimento) - Obviamente, o protagonista não morre no sentido físico, mas as mazelas da guerra o fazem morrer como "homem humano". Uma parte dele fica apagada, ele continua vivo, mas na minha opinião o renascimento não ocorre. Talvez seja porque não há nenhuma Revelação. O que acontece com o protagonista é uma profunda desilusão.
Transformação - Mesmo que o renascimento não aconteça, o protagonista passa pelo processo de transformação. Nunca mais será como foi antes. Torna-se um homem desiludido, profundamente cínico e indiferente, incapaz de viver de novo a vida de antes da "aventura".
Reconciliação - Eis a parte do esquema, ao lado da Revelação, que não condiz com a estrutura da obra de Lobo Antunes. Só que a Revelação ficou substituída pela Desilusão, enquanto a Reconciliação não aparece de modo nenhum, é o elemento que falta, o elemento de que a história carece. Provavelmente, se houvesse uma reconciliação, a história do protagonista terminaria de outra maneira.
Regresso - O fim da guerra e o regresso do protagonista a Portugal.

Como se pode ver, embora o esquema mostre a estrutura dos mitos, então obras antigas, enquanto Os Cus de Judas é um livro moderno com muitas marcas indubitavelmente pós-modernas, é possível aplicá-lo a construção desta, no entanto com pequenas modificaçãoes. Talvez seja uma sobreinterpretação, mas mesmo assim vale a pena tomá-la em considerção por um momento: será Os Cus de Judas um mito moderno e o protagonista de Lobo Antunes um "herói mítico" contemporâneo, na medida dos nossos tempos e condições?

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O fundo de um labiríntico poço

Para colocar mais um grão na areia do que já foi dito sobre as refrências e as comparações às obras de arte das quais todo o livro Os Cus de Judas de Lobo Antunes é entretecido (os comentários e as sugestões de interpretação pode-se encontrar por exemplo no blogue da minha colega Agata), adicionado um pequeno fragmento da crítica do livro feita por também já citado senhor Ricardo Turnes:

«Serve-se de palavras duras, agressivas, de frases excessivamente longas, sórdidas, carregadas de adjectivos e referências culturais dispersas, construídas de forma a nos empurrarem a atenção para o fundo de um labiríntico poço de funcionalismos metafóricos.» (o sublinhado meu).
Isto significa que o autor apropria-se das metáforas, usa as comparações para construir este labiríntico poço de referências culturais inimaginavelmente diversas e para chamar a nossa atenção a isso que fica no fundo.
Mas o que é que está lá e porque para o autor importa tanto que dediquemos atenção àquilo? Para mim, isto continua ser um enigma. Talvez a intenção do escritor era que o permanecesse... Será que alguém já descobriu a solução?

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Outra vez a figura da misteriosa mulher - interlocutora muda do protagonista não me deixa em paz. Achei interessante a intepretação dela feita por Nuno Barbosa:

«Atente-se que a "interlocutora" do extenso monólogo do narrador encarna qualquer um que leia a obra: escuta-o (ou pelo menos ouve) e intervém como o leitor o faria, para no fim fechar a porta e o abandonar, como nós fechamos o livro e o esquecemos numa prateleira - todos constituímos acidentais pretextos para uma pontual exposição.» (http://alawebpage.blogspot.com/2010/03/nuno-barbosa-comentario-os-cus-de-judas.html)
Talvez a personagem da mulher que não diz nada, quase não reage, só ouve e enfim abandona o protagonista seja uma projeção do leitor, bastante à maneira pós-moderna de jogos com o leitor.
Porém, surgiu-me ainda outra possibilidade de interpretação (ou se calhar de sobreinterpretação?). A ideia apareceu depois da leitura do comentário sobre a leitura dOs Cus de Judas de José Alexandre Ramos, nomeadamente o trecho seguinte:

«Para além da tragédia pessoal da personagem que monologa com uma mulher, é um dos primeiros gritos de atenção para aquilo que parecia ter passado despercebido no seio da sociedade portuguesa: que homens partiram para uma guerra que não reconheciam como sua, que regressaram com mazelas, a culpa, a vergonha e os remorsos dos seus actos em nome de um conceito de pátria duvidoso. Tudo parecia esquecido ou todos queriam esquecer essa nódoa. Assim, Os Cus de Judas acaba por ser também uma crítica social e política não só a quem urdiu e alimentou o conflito mas também aos novos donos do poder e a uma sociedade indiferente a tudo isso, de um tempo perturbado com o fim dessa guerra e os distúrbios de uma revolução recente.» http://alawebpage.blogspot.com/2010/01/jose-alexandre-ramos-os-cus-de-judas.html
Será possível ler a mulher como uma personificação desta sociedade portuguesa que quer esquecer todas as malezas, que ignora os ex-militantes distorcidos pela guerra e deixa-os sozinhos com os seus tormentos e traumas que lhes impossibilitam de novo entrar nesta realidade? Pois a personagem da mulher é exactamente assim: ouve, ou antes deixa falar, mas não reage, não mostra nenhuma compaixão, até não falando de uma consolação ou vontade de aliviar, ajudar. É como a sociedade - indiferente.