quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

"A propósito de ti" e "Pedro"

Inara de Oliveira Rodrigues, autora de já citado ensaio sobre as crónicas de António Lobo Antunes, afirma que a sua escrita cronística tem muitas marcas do «seu reconhecido e singular estilo autoral» revelado na sua prosa romanesca, tais como:
  • linguagem com pontuação rarefeita e diálogos sobrepostos
  • vários planos temporais
  • narração polifónica
  • ironia, muitas vezes corosiva
  • desconcertante criação de imagem
  • rigor da construção estética e linguística
 São as características dos seus romances, que, segundo Oliveira Rodrigues, se encontram igualmente nas crónicas, e que fazem delas «tributárias» da sua ficção. Além delas, a estudiosa vê também outra «cruzada entre o universo da crónica e do romance de Lobo Antunes» na configuração das suas personagens (Rodrigues 2009). Citando Pedro Manuel Mateus, constata que, na sua maioria, eles vivem «num mundo desumanizado, enquadrados numa sociedade e numa época claramente marcadas por um embotamento dos sentimentos (...) o que dificulta e limita os diversos relacionamentos (...)» (Mateus 2003: 154-155, cit. por Rodrigues 2009). Entre os exemplos das crónicas que se enquadram nesta característica Oliveira Rodrigues aponta também para "A propósito de ti".

Esta crónica, publicada em 1998 na colectânea Algumas Crónicas, retrata duma forma imagética e ao mesmo tempo muito expressiva e densa os aspectos da condição da nossa realidade como a vida numa ilusão de felicidade, a perseguição da vida boa em termos materiais, a superficialidade das relações, a ausência de uns aos outros e a falta de comunicação, falta de compreensão do outro. É impressionante como Lobo Antunes consegue criar uma narrativa movente e inquietador através dum discurso aparentemente sereno e alegre, isento de qualquer pathos e grandes emoções; como conta uma história profundamente triste enchendo-a dum humor inocente (o motivo da coleira contra as pulgas); como dá-nos uma história tão simples, tão quotidiana e quase familiar, que a sua proximidade até assusta.

A incapacidade do estabelecimento de relações verdadeiramente humanas, a que se refere Oliveira Rodrigues, deve ser de facto um tema recorrente nas crónicas de Lobo Antunes, tanto nestas publicadas já há muitos anos, como numas das mais recentes. Pegei na última, intitulada "Pedro", que apareceu na revista Visão a 18 de Novembro, e o que encontrei? Mais uma história do quotidiano, escrita numa linguagem simples. Um homem, uma mulher, um jantar. E um drama pessoal que invade a vida do protagonista de forma vigarista e inesperada, porque vem duma pessoa supostamente muito próxima, talvez até a mais próxima que ele tinha. Pelo menos assim tinha pensado. É o drama que se insinua e destrói a sua vida num só momento. E permanece um drama mudo, não exprimido, digerido numa solidão rasgadora. Porque, assim como o narrador de Os Cus de Judas, os protagonistas de Lobo Antunes sempre ficam sós com os seus dramas e enfrentam-nos sozinhos, sem conselho nem consolação, seja este drama um trauma pós-guerra, seja um abandono por uma pessoa íntima.

É uma realidade efêmera, uma vida contemporânea desumanizada, cujas pormenores, muitas das vezes despercebidas na corrida do dia-a-dia, não escapam ao olhar agudamente crítico de Lobo Antunes.

ANTUNES, António Lobo (1998) "A propósito de ti", Algumas Crónicas. Lisboa, Dom Quixote, pp. 97-99.
ANTUNES, António Lobo (2010) "Pedro", Visão (Medipress, Lisboa) http://aeiou.visao.pt/pedro=f580207

RODRIGUES, Inara de Oliveira (2009) "Efemeridade e permanência no Livro de Crónicas, de António Lobo Antunes", Navegações (Porto Alegre), v. 2, nº 2, pp. 141-146 http://ala.nletras.com/livros/cronicas.pdf

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