quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ana Luísa Amaral e a Tradição

O livro de poesia de Ana Luísa Amaral, A Génese do Amor, inscreve-se na linha temática do nosso curso de Tendências Actuais na Literatura Portuguesa, que é o diálogo com o passado, com a tradição. Todavia, este dialogismo parece ser muito intenso em toda a poesia de Ana Luísa Amaral. Assim o descreve Maria Irene Ramalho de Sousa Santos no seu "Prefácio" à Minha Senhora de Quê de Ana Luísa Amaral:
«(…) Ana Luísa Amaral escreve os seus poemas em diálogo constante com os poetas, com a poesia e com a tradição — ou, mais bem dito, com as tradições. (...) A reinvenção da tradição a que o talento e a imaginação de Ana Luísa Amaral vêm dando forma desde há dez anos constitui, ela própria, uma tradição reinventada: a tradição ininterruptamente reimaginada por mulheres poetas, a cuja inteligência não pode deixar de incomodar o modelo órfico que largamente preside à lírica ocidental até hoje (...).»
A própria Ana Luísa Amaral, perguntada sobre pontes constantes da sua poesia com textos do passado, respondeu:
«[Poesia] É as quatro coisas: solilóquio e diálogo, novidade e reactualização do já dito. O poema existe sempre a sós consigo, tal como quem o escreve está sozinho perante si mesmo; ao mesmo tempo, ele existe também em relação (com os outros, leitores, ainda que ideais, e com a tradição). Adicionalmente, e porque existe em relação, a poesia aspira a um trabalho novo com a palavra: embora sabendo quem a escreve que, no essencial, as coisas já foram ditas, o que se deseja é poder dizê-las de outras formas.» (entrevista de Pedro Teixeira Neves, "Este país maltrata a cultura, sempre a maltratou", de 14.02.2010).

Quando a A Génese do Amor, salta à vista o diálogo com autores canônicos de poesia amorosa, tanto universal (Petrarca, Dante), como portuguesa (Camões). No entanto, já que o livro não trata somente do amor, mas também da poesia, aparecem também referências, só que mais subtis, não tão directas, ao grande poeta e teórico de poesia, Fernando Pessoa (por ex. nos versos: «como depois de nós, / muito depois, / alguém, que será muitos, / falará»; em A Génese do Amor, Porto 2005, Campo das Letras, p. 20).
«(...) eu servi-me de Petrarca, de Dante, de Camões, sobretudo, do que edifica a nossa tradição lírica, para poder falar sobre o amor. Não quis, com isso, glosar Camões, mas prestar homenagem à tradição, ao mesmo tempo que subvertê-la.» (Ana Luísa Amaral em entrevista com Na Marques Gastão publicada em Diário de Notícias a 14.08.2005).

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Da faceta heterdoxa de Herberto Helder

Maria Henriquês, autora dum blogue sobre Herberto Helder, escreveu que «de Herberto Helder (...) pouco se sabe, além de que se chama Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira, nasceu no Funchal, a 23 de Novembro de 1930, e reside em Lisboa, com a mulher, Olga.» Esta afirmação é, claro, bastante exagerada, já que se conhece muitos factos da vida do poeta (que, aliás, prova uma das minhas entradas anteriores - Herberto Helder). Mas a autora da frase queria provavelmente deste modo dar a relevância ao facto de que a partir dum certo momento, nomeadamente do ano 1968, Herberto Helder vive num dos mais zelosos anonimatos, evitando a vida mediática.

As fontes declaram que foi em ano 1968 quando o poeta deu a última entrevista. No entanto, esta informação revelou-se a mim pouco verosímil quando descobri que há referências a entrevistas posteriores, como por ex. uma carta enviada à revista Abril em 1977 ou uma entrevista dada a Eduardo Prado Coelho a 4 de Dezembro de 1990.
Contudo, pode-se admitir que foram umas excepções e que, em geral, desde 1968 Herberto Helder evita aparecer nos média e dar entrevistas, e vive em auto-reclusão.

O ano 1968 foi o ano em que o poeta se envolveu na publicação de um livro sobre o Marquês de Sade, publicação essa que resultou em um processo judicial no qual Herberto Helder foi condenado. Devido às repercussões deste episódio conseguiu obter suspensão de pena, mas mesmo assim foi despedido da Rádio e da Televisão portuguesas. Refugia-se na publicidade e, posteriormente, numa editora. Ainda nesse ano publicou os livros Apresentação do Rosto, que foi suspenso pela censura, O Bebedor Nocturno e ainda Kodak e Cinco Canções Lacunares.

Apesar de publicar, nos anos seguintes, mais algumas obras, entre as quais Cobra (1977), O Corpo, o Luxo, a Obra (1978) e Photomaton & Vox (1979), remeteu-se ao silêncio. E falou dele, numa carta enviada em 1977 à revista Abril, endereçada a Eduardo Prado Coelho: «O que é citável de um livro, de um autor? Decerto a sua morte pode ser citável. E, sobretudo, o seu silêncio».

Em 1994 recusou o Prémio Pessoa, «por razões pessoais e secretas».

Em 2007, António José de Almeida pretendia fazer um documentário para RTP2. Herberto Helder pediu aos amigos que não falassem dele. O documentário, Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro, acabou por ser feito, mas apenas adensou o mistério em torno da figura do poeta, já que 17 das 29 pessoas contactadas pela produção se recusaram a dar o seu testemunho.  
Como afirma Maria Henriquês, «essa faceta heterodoxa do poeta – alheado por completo da vida mediática, não recebendo prémios, não concedendo entrevistas desde 1968 – é bem conhecida e, de algum modo, até contraproducente para a divulgação da sua obra». Se isso é tão contraproducente como se afirma, pode ser um tema de discussão, pois há quem diga que este comportamento resulta duma estratégia de marketing (o ar de mistério aumenta a sua popularidade e curiosidade dos leitores e faz com que comprem as suas obras). 

O verdadeiro motivo da sua reclusão não é conhecido. Creio, talvez ingenuamente, que afastando-se da vida mediática e da crítica literária, o poeta tenta transmitir a mensagem que o que realmente vale na literatura é a própria literatura e não o que a rodeia. Se calhar, tenta apagar a sua pessoa na consciência do público para dar o relevo à sua poesia e permitir-lhe dizer por si mesma. Ou, simplesmente, Helder dá pouca importância à crítica, ou até a negligencia como autor, o que se reflecte na citação da entrevista de 17 de Maio de 1964: «A crítica? Bem vê: nas circunstâncias em que me encontro, a crítica não me poderia ajudar. Ela de resto nunca ajuda um autor».

Fontes:
http://aaventurainterior.blogspot.com/2008/10/entrevista-herberto-helder.html
http://aaventurainterior.blogspot.com/
http://aaventurainterior.blogspot.com/2010/06/humus-de-herberto-helder-rui-torres.html
http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/helder/biogra.html

«Ler um poema é poder fazê-lo, refazê-lo»

Esta citação de Herberto Helder que vem, como informa Rui Torres, da entrevista dada a Eduardo Prado Coelho, ilustra bem a conhecida tendência do poeta de re-escrever a sua própria obra. Na opinião de Maria de Fatima Marinho, autora do artigo intitulado Herberto Helder: para uma estética de modificação onde analisa as alterações feitas pelo poeta, Herberto Helder é até «quase incapaz de reeditar uma obra sua sem a reler - sem a transformar» (citação de Maria de Fatima Marinho atrás de Rui Torres).
De facto, Herberto Helder começou a publicar em 1958, com um livro de poesia O Amor em Visita. A publicação em 1963 de Os Passos em Volta, obra de prosa poética, trouxe-lhe uma notoriedade imensa, de que ainda vem gozando. Como afirma Maria Henriquês (http://aaventurainterior.blogspot.com/), «dez anos depois, em 1973, começa um dos processos antológicos mais interessantes da literatura portuguesa, com Poesia Toda, que republicará em volumes sequencialmente mais magros».

Porquê mais magros? Porque, conforme a análise de Maria de Fatima Marinho feita sobre as re-edições de Ofício Cantante, Poesia Toda Os Passos em Volta, as mais correntes alterações dizem respeito a várias supressões:
  • supressão de redundâncias; 
  • supressão de sinais enfáticos, de ah e oh exclamativos;
  • eliminação de «elementos que contribuem para uma intensificação que redunda em repetição: pronome possessivo adjunto, pronome pessoal sujeito, artigo definido antes do possessivo, duplicação do mesmo adjectivo ou substantivo» (citação de Maria de Fatima Marinho atrás de Rui Torres).

    Outras preocupações do poeta, relativas a elementos estilísticos, são: 
  • mudança de posição de adjectivos e advérbios;
  • substituição do artigo indefinido pelo definido;
  • passagem de pronome reflexo de terceira pessoa para o de primeira pessoa;
  • alteração de adjectivos, substantivos e verbos por menos banais;

    A estes juntam-se também alguns de cariz mais formal, como por exemplo:
  • mudanças na divisão de versos e estrofes.

    Estas mudanças na verdade pequenas e, diríamos, cosméticas, devem ter uma grande importância para Herberto Helder, uma vez que lhes dedica tantas releituras das suas obras antes de as reeditar. Ilustram a tese modernista que o poema nunca constitui um produto acabado e provavelmente constituem movimentos estratégicos na luta do poeta com esta matéria indomável que é a linguagem. Ou, talvez, é mais uma experiência literária, uma manifestção do experimentalismo poético, de que Herberto Helder gosta tanto (cf. http://aaventurainterior.blogspot.com/2008/10/entrevista-herberto-helder.html).


quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Teorema e Teoremat

"Teoremat" é o título polaco do conto helderiano que, na tradução de Marta Machowska, foi publicado no nº 3-4/2010 da revista Literatura na Świecie.
Pego nesta tradução e comparo-a com o original. O meu objectivo não é criticar ou indicar erros, já que não sou uma tradutora nem tenho o conhecimento suficiente deste ofício. Intento apenas ver algumas das soluções pelas quais optou a tradutora e se o efeito final - Helder em polaco - faz uma impressão semelhante à do original.

Stanisław Barańczak, o poeta polaco e tradutor de Shakespeare, entre outros, afirma que a boa tradução deve, antes de tudo, funcionar bem na língua para a qual a obra se traduz, ou seja, deve parecer uma obra independente, escrita nesta língua, e não uma tradução. Mesmo que Barańczak, ao falar deste critério, refere-se a obras poéticas, julgo que se pode aplicá-lo também à prosa. E a tradução do "Teorema" cumpre esta condição. O "Teoremat" é tão cativante como o original.

Na minha opinião, a tradução é muito fiel ao original. A verdade é que o conto não tem umas metáforas complexas ou outros recursos estilísticos que seriam difíceis de traduzir. A linguagem utilizada por Helder no conto é antes muito directa. Há, porém, junções de palavras sinuosas ou frases construídas ou cortadas de maneira que não funcionaria bem em polaco. É interessante ver como a tradutora tinha às vezes de "safar-se" mudando ligeiramente a construção duma frase ou a sua parte, sem mudar, obviamente, o sentido:

«Por baixo da janela aonde assomou há uma outra, em estilo manuelino, uma relíquia, delicada obra de   pedra que resiste ao tempo.» (Helder 1963: 117)            
«Poniżej okna, w którym stanął, widnieje drugie okno, relikwia stylu manuelińskiego, subtelne dzieło w kamieniu, odporne na działanie czasu.» (Helder 2010: 25)
«Fico em pé, defronte do edifício.» (1963: 118)             
«Podnoszę się. Teraz stoję na wprost budynku.» (2010: 26)

«Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade encontrar-se alguém à cabeça de um povo assim.» (1963: 119)                                     
«Jesteśmy narodem barbarzyńskim i czystym. To wielka odpowiedzialność, być przywódcą takiego wielka odpowiedzialność, być przywódcą takiego narodu.» (2010: 27)

«O rei estará insone nos seus aposentos, sabendo que amará para sempre a minha vítima.» (1963: 121)                                                                    
«Król pozostanie bezsenny w swoich komnatach; on wie, że zawsze będzie kochał moją ofiarę.» (2010: 27)

Às vezes, era preciso usar mais adjectivos para conseguir exprimir duma forma mais fiel o sentido das palavras portuguesas:

«Foi um espectáculo sinistro e exaltante através de cidades, vilas e lugarejos.» (1963: 118)                       
«Ponury, podniosły i poruszający spektakl, ciągnący się przez miasta, miasteczka i wioski.» (2010: 26)

No entanto, a parte mais bem-sucedida é a parte final. Não vou citá-la. A quem seja interessado, recomendo a leitura da tradução inteira do conto.

HELDER, Herberto (1963) "Teorema". Em: Passos em Volta. Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 117-121.

HELDER, Herberto (2010) "Teoremat". Em. Literatura na Świecie, nº 3-4/2010, Warszawa, pp. 25-28.


BARAŃCZAK, Stanisław (2004) Ocalone w tłumaczeniu. Kraków, Wyd. a5.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

"Teorema" - uma leitura perversa da tradição

      Terese Cristina Cerdeira, autora dum ensaio crítico sobre o "Teorema" de Herberto Helder, afirma que o conto parte duma leitura perversa, ou duma releitura da tradição, tanto histórica como a mítica. A perversão é, aliás, a palavra que, segundo a estudiosa, circula mais a propósito na apreensão deste conto. E, realmente,  é esta mesma perversão que se sente ao longo da leitura e que está presente no texto sob várias formas. 
        A primeira e a mais visível é a perversão espácio-temporal (cronotópica). Esta revela-se na «inadequação de a cena histórica do século XIII ver-se inserida - mas não atualizada será preciso insistir - num cenário híbrido de camadas de passado e indícios do presente». O cenário em que se desenrolam os acontecimentos possui umas marcas que destroem a coerência temporal do conto. Refiro-me às anacronias presentes no texto, como por exemplo o castelo do rei (sec. XIII) que tem uma «janela manuelina»; «a monstruosa igreja do Seminário» que assoma na praça, na qual se encontra também «a estátua municipal do marquês de Sá da Bandeira»; a presença do klaxon, dos automóveis ou da Barbearia Vidigal.
      O outro tipo de perversão detectável no conto tem a ver com o modo de narração que ele representa. A perversão encontra-se aqui em dois planos. Por um lado, a história heróica da vingança contra o crime da morte de Inês de Castro (que coloca sempre D. Pedro na posição central do herói) ganha aqui um outro ponto de vista por ser narrada pelo próprio matador de Inês. Por outro lado, o conto apresenta-nos uma «situação-limite» em que o eu narra num tempo que dura antes, durante e depois da própria morte. Segundo Teresa Cristina Cerdeira a perversão aqui tem a ver, mais do que com a verossimilhança, com «o próprio estátuto filisófico da linguagem», uma vez que ninguém é capaz de narrar a própria morte. «(...) a morte é o único ato que não passível de ser narrado, porque está justamente fora da linguagem», explica Cerdeira. No entanto, o conto, no mometo da morte do narrador, não desloca a observação da cena para um outro, mas fá-la ser narrada do ponto de vista daquele que morre. Contudo, como justamente observa a estudiosa, não se trata de mergulhar no maravilhoso ou no fantástico. «O conto (...) mantém até certo ponto suas balizas claramente realistas, e é de dentro delas que se constrói a perversão do realismo, quer por efeitos de inadequação temporal, espacial, ou actancial».
      O conto apresenta também uns «degraus da desmontagem das expectativas éticas, morais e religiosas», que revelam uma série de perversões axiológicas: o bem e o mal, Deus e Diabo, o céu e o inferno, a vida e a morte. Nestes pares dos valores opostos, os primeiros elementos (o bem, Deus, o céu, a vida) são associados com a «insignificância», a «estupidez» e com a «perdão a todas as ofensas», representadas pela figura da esposa do rei, D. Constança, desrespeitada pelo narrador.
      Além disso, o que o conto parece celebrar é nada mais que «o júbilo erótico de uma experiência a três».

«Suprema perversão de um eu que ousa dizer o seu desejo, que ousa proclamar o seu amor, que é amor do amor do outro e amor pelo outro. A cena mítica de Pedro devorando o coração do assassino de Inês já não é, portanto, um grito de vingança; é uma espécie de triplo orgasmo, ato salvífico em sendo mortal, em que o narrador-amante se vê para sempre dentro do corpo do rei, devorado por ele, misturado a  seu próprio corpo,  acolhido em suas  entranhas,  como o rei  estaria  também para sempre dentro de Inês  e ela dentro dele,  pela conseqüência do ato generoso de um matador que conseguiu levar a amada e a si próprio para o terreno do “incorruptível”».
 Enfim, a eternidade, que parece ser um dos motivos principais do conto, constitui uma vitória perversa da vida sobre a morte, pois atingida através duma consagração da morte. É uma eternidade que parece ser um modo de driblar a força de Deus que a negou ao homem «para que este não o ameaçasse com sua perfeita semelhança».


*todo o grifo é meu

CERDEIRA, Teresa Cristina (2008) "Teorema: uma lógica moderna de sujeitos desejantes", Abril (Revista do Núcleo Estudos de Literaturas Portuguesas da Universidade Federal Fluminense, Niterói), vol. 1, nº 1, pp. 52-57.
http://www.uff.br/revistaabril/Revistas/006_TereseCerdeira.pdf (09.12.2010)

HELDER, Herberto (1977) "Teorema", Passos em Volta. Lisboa, Assírio&Alvim.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Herberto Helder

Nasceu em 1930 no Funchal, ilha de Madeira, no seio de uma família de origem judaica.
Em 1948, matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra e, em 1949, muda para a Faculdade de Letras onde frequenta, durante três anos, o curso de Filologia Romântica, não tendo terminado o curso.
Em 1958 publica o seu primeiro livro - O Amor em Visita.
Durante a sua vida viajou muito e viveu em vários lugares: Lisboa, França, Holanda, Bélgica, Antuérpia, Angola (onde trabalhava como um repórter de guerra), Inglaterra, os Estados Unidos. Visitou também Espanha e Dinamarca, percorreu as vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo. Trabalhou nas inúmeras profissões - na Caixa Geral de Depósitos, como angariador de publicidade, meteorologista, propagandista de produtos farmacêuticos, redactor de publicidade, operário no arrefecimento de lingotes de ferro numa forja, criado numa cervejaria, cortador de legumes numa casa de sopas, empacotador de aparas de papéis, policopista, encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, redactor de noticiário internacional na Emissora Nacional, nos serviços mecanográficos de uma fábrica de louça, como co-gerente e director literário numa editora, repórter de guerra, tradutor. A última referência encontrada da instabilidade biográfica de Herberto Helder refere-se ao facto de o poeta ter abandonado todas as suas anteriores actividades e de viver no mais cioso dos anonimatos.


Quanto às suas vinculações literárias, Herberto Helder é considerado um dos introdutores do movimento surrealista em Portugal nos anos cinquenta, de que mais tarde se viria a afastar. Participou na organização da revista Poesia Experimental, assim como na organização e edição da revista Nova que, sendo posterior à revolução de 25 de Abril de 1974, reconhecia na Literatura portuguesa características que a aproximaram às Literaturas latino-americana, africana e espanhola, declinando uma direcção literária revolucionária cuja actividade não ultrapassou o plano teórico devido à instabilidade política portuguesa que se fazia sentir na altura. À sua variedade biográfica corresponde uma variedade literária, uma vez que a sua poesia atravessa várias correntes literárias.
Desde 1958, publica as suas obras com uma certa regularidade, embora algumas das publicações sejam as reedições das obras já publicadas, o que acontece sobretudo com a sua poesia (Poesia Toda - 1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de 1963 a 1971; reedição em 1973; Poesia Toda - 1ª ed. em 1981; Ofício Cantante, mais uma edição de Poesia Toda - 2009). Os seus poemas têm sido "depurados" ao longo dos anos.

E é este "depuramento" que desperta o meu interesse particular, mesmo que não consegui encontrar uma informação mais detalhada sobre o tema. No entanto, para mim este procedimento do poeta madeirense representa o que Douwe W. Fokkema considera uma das principais convenções modernistas, isto é a convicção de que o texto nunca é definitivo. «Se o texto não se pode considerar definitivo e completo, a noção de final torna-se relativa; (...). Aparentemente, o texto nunca está completo, e pode ser sempre continuado, reelaborado, aperfeiçoado e até revogado» (Fokkema 1983 : 30). Parece-me que o que Herberto Helder faz com as sucessivas edições da sua poesia se inscreve perfeitamente nesta convenção modernista, ou até é esta mesma tendência levada ao extremo.



Fontes:
FOKKEMA, Douwe W. (1983) História Literária. Modernismo e Pós-Modernismo. Lisboa, Vega.
http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/helder/biogra.html
http://triplov.com/herberto_helder/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Herberto_H%C3%A9lder

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

"A propósito de ti" e "Pedro"

Inara de Oliveira Rodrigues, autora de já citado ensaio sobre as crónicas de António Lobo Antunes, afirma que a sua escrita cronística tem muitas marcas do «seu reconhecido e singular estilo autoral» revelado na sua prosa romanesca, tais como:
  • linguagem com pontuação rarefeita e diálogos sobrepostos
  • vários planos temporais
  • narração polifónica
  • ironia, muitas vezes corosiva
  • desconcertante criação de imagem
  • rigor da construção estética e linguística
 São as características dos seus romances, que, segundo Oliveira Rodrigues, se encontram igualmente nas crónicas, e que fazem delas «tributárias» da sua ficção. Além delas, a estudiosa vê também outra «cruzada entre o universo da crónica e do romance de Lobo Antunes» na configuração das suas personagens (Rodrigues 2009). Citando Pedro Manuel Mateus, constata que, na sua maioria, eles vivem «num mundo desumanizado, enquadrados numa sociedade e numa época claramente marcadas por um embotamento dos sentimentos (...) o que dificulta e limita os diversos relacionamentos (...)» (Mateus 2003: 154-155, cit. por Rodrigues 2009). Entre os exemplos das crónicas que se enquadram nesta característica Oliveira Rodrigues aponta também para "A propósito de ti".

Esta crónica, publicada em 1998 na colectânea Algumas Crónicas, retrata duma forma imagética e ao mesmo tempo muito expressiva e densa os aspectos da condição da nossa realidade como a vida numa ilusão de felicidade, a perseguição da vida boa em termos materiais, a superficialidade das relações, a ausência de uns aos outros e a falta de comunicação, falta de compreensão do outro. É impressionante como Lobo Antunes consegue criar uma narrativa movente e inquietador através dum discurso aparentemente sereno e alegre, isento de qualquer pathos e grandes emoções; como conta uma história profundamente triste enchendo-a dum humor inocente (o motivo da coleira contra as pulgas); como dá-nos uma história tão simples, tão quotidiana e quase familiar, que a sua proximidade até assusta.

A incapacidade do estabelecimento de relações verdadeiramente humanas, a que se refere Oliveira Rodrigues, deve ser de facto um tema recorrente nas crónicas de Lobo Antunes, tanto nestas publicadas já há muitos anos, como numas das mais recentes. Pegei na última, intitulada "Pedro", que apareceu na revista Visão a 18 de Novembro, e o que encontrei? Mais uma história do quotidiano, escrita numa linguagem simples. Um homem, uma mulher, um jantar. E um drama pessoal que invade a vida do protagonista de forma vigarista e inesperada, porque vem duma pessoa supostamente muito próxima, talvez até a mais próxima que ele tinha. Pelo menos assim tinha pensado. É o drama que se insinua e destrói a sua vida num só momento. E permanece um drama mudo, não exprimido, digerido numa solidão rasgadora. Porque, assim como o narrador de Os Cus de Judas, os protagonistas de Lobo Antunes sempre ficam sós com os seus dramas e enfrentam-nos sozinhos, sem conselho nem consolação, seja este drama um trauma pós-guerra, seja um abandono por uma pessoa íntima.

É uma realidade efêmera, uma vida contemporânea desumanizada, cujas pormenores, muitas das vezes despercebidas na corrida do dia-a-dia, não escapam ao olhar agudamente crítico de Lobo Antunes.

ANTUNES, António Lobo (1998) "A propósito de ti", Algumas Crónicas. Lisboa, Dom Quixote, pp. 97-99.
ANTUNES, António Lobo (2010) "Pedro", Visão (Medipress, Lisboa) http://aeiou.visao.pt/pedro=f580207

RODRIGUES, Inara de Oliveira (2009) "Efemeridade e permanência no Livro de Crónicas, de António Lobo Antunes", Navegações (Porto Alegre), v. 2, nº 2, pp. 141-146 http://ala.nletras.com/livros/cronicas.pdf

A propósito das crónicas

         Quanto à escrita de autores que percorrem entre os géneros da crónica e do romance, constata-se em geral que «o primeiro (a crónica) tende a expressar-se como uma espécie de ensaio na configuração das estratégias narrativas para a elaboração do segundo» (Rodrigues 2009). Como afirma Inara de Oliveira Rodrigues, citando Davi Arrigucci Jr., «(...) de fato os escritores como que se preparavam, por esse meio [a crónica], para um género maior e na aparência mais seguro por seu próprio inacabamento - o romance» (Arrigucci Jr. 1987: 47, cit. por Rodrigues 2009).

O próprio António Lobo Antunes parece confirmar esta constatação, uma vez que diz na entrevista: «(...) aquilo era uma espécie de quase itinerário paralelo aos romances. E acabou por haver muitas coisas que me serviram de transfusão e que acabei por aproveitar para romances, etc.». No entanto, e o que constitui um facto curioso, segundo Oliveira Rodrigues, que nesta questão concorda com Carlos Reis, o caso de Lobo Antunes é diferente, já que na sua escrita é a ficção que contribui para a crónica, e não o contrário. Isto devido tanto à  ordem cronológica das suas publicações (a sua produção romanesca madura é anterior à escrita das narrativas breves), como também a remodelação empreendida na construção narrativa das suas crónicas. A remodelação esta, nas palavras de Carlos Reis citadas por Oliveira Rodrigues, constitui uma «consequência da revisitação de um mundo que o escritor conhece» por via da ficção que tem escrito, «sobretudo aquela em que reconhecemos a marca forte da lembrança pessoal e do testemunho autobiográfico» (Reis 2003: 30, cit. por Rodrigues 2009). A única diferença consiste na procura do escritor de respeitar «contingências enunciativas e pragmáticas que caraterizam a crónica», isto é: a extensão limitada do texto, as expectativas de um público de jornal e a periodicidade da publicação cronística..
Outra vez encontramos a confirmação destas teses nas próprias palavras de Lobo Antunes, que disse na entrevista:
«(...) nessa altura apareceu-me uma proposta do Vicente Jorge Silva, que dirigia o Público, na altura, para escrever as crónicas, e eu na altura precisava daquele dinheiro. E... não sabia muito bem, pensava, bom, isto é para sair num suplemento de domingo, tenho de fazer umas coisas curtas e leves.
[Entrevistador:]Porque é que tinham que ser coisas leves?
[ALA:] Porque era para ser lido ao domingo...» (grifo meu).
 Assim sendo, apesar de as crónicas de António Lobo Antunes parecerem nascer dum pragmatismo resultante dum problema financeiro do escritor («as crónicas começaram por problemas financeiros, foram numa altura em que a editora estava mal, não havia dinheiro...(...)e eu na altura precisava daquele dinheiro.») e de aparentemente serem negligenciadas pelo próprio autor («Mas para mim, durante muito tempo, eram coisas que eu fazia o mais depressa que podia, e fazia-as, simplesmente, com uma ideia alimentar. (...) O que pretendo é voltar para o romance, percebes, e então o que faço é escrevê-las no intervalo de dois capítulos.»), constituem indubitavelmente um «prolongamento renovado de sua escrita romanesca» (Rodrigues 2009).


RODRIGUES, Inara de Oliveira (2009) "Efemeridade e permanência no Livro de Crónicas, de António Lobo Antunes", Navegações (Porto Alegre), v. 2, nº 2, pp. 141-146 http://ala.nletras.com/livros/cronicas.pdf