quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Romance de formação?

Espero que concordem comigo que o romance Os Cus de Judas conta a vida do protagonista desde a infância até o momento do discurso em que ele executa o seu discurso. Não a conta, claro, de modo cronológico, mas, muito à maneira pós-moderna, de forma discontínua, fragmentada, não linear, dispersa. No entanto, é possível reconstruir a trajectória da sua vida. Isto trouxe-me à memória o conceito de Bildungsroman, isto é: “romance formativo ou romance de formação”; em ingl., coming-of-age novel ou apprenticeship novel (segundo E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia). Parece-me que o livro de Lobo Antunes é, de certo modo, um tipo de Bildungsroman. A definição corresponde à ideia geral da narrativa:
«O protagonista é uma personagem jovem, do sexo masculino (...), que começa a sua viagem de formação em conflito com o meio em que vive, determinado em afrontá‑lo e recusando uma atitude passiva; deixa‑se marcar pelos acontecimentos e aprende com eles, tem por mestre o mundo e atinge a maturidade integrando no seu carácter as experiências pelas quais vai passando; (...) sofre pelo imenso contraste entre a vida que idealizou e a realidade que terá de viver; o seu encontro consigo mesmo significa também uma compreensão mais ampla do mundo. (...) O romance organiza‑se pela aparente ausência de um princípio de unidade: a narrativa articula‑se em função da viagem espiritual do protagonista e não impõe aos diversos episódios uma sucessão lógica visível. Tem um carácter aberto, não conclusivo que possibilita o surgir de obras de continuação (...). A plasticidade da forma adequa‑se à multiplicidade de experiências necessárias à maturação do herói.» (também segundo E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia).
O romance de Lobo Antunes constitui para mim um moderno Bildungsroman, modificado pelos traços do discurso pós-moderno. A maior diferença entre o romance de formação clássico e o moderno consiste, na minha opinião, em que o encontro do protagonista consigo mesmo já não significa a «compreensão mais ampla do mundo» ou, talvez, o protagonista moderno nunca encontra si mesmo?

2 comentários:

  1. Muito bem notado! Permite-me só colocar um pequeno grão de areia na engrenagem :-)

    Achas que até lhe poderíamos chamar um romance de formação às avessas ou de "deformação"? Haverá uma tentativa consciente de subverter as regras do tipo de romance de formação? Porque vejamos, a sua viagem de formação é obrigatória e resulta de uma atitude passiva. Ele é obrigado a ir para a guerra. E será que essa experiência o faz encontrar consigo mesmo ou, pelo contrário, o afasta irremdiavelmente de um dia se poder a vir encontrar? E em relação à compreensão do mundo? Será que este homem tem uma compreensão mais ampla do mundo ou mais deformada, traumatizada? E para acabar, será que podemos falar dele como um "herói"?

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  2. Obviamente não podemos falar do protagonista de Lobo Antunes com um "herói" na sua definição clássica ou romantista. Ele constitui antes um exemplo do herói moderno (ou pós-moderno), que seria mais adequado chamar de anti-herói. Julgo também que este homem não consegue se encontrar consigo mesmo e assim a sua compreensão do mundo não pode ser mais ampla, mas sim, deformada. Contudo, quanto à obrigatoriedade da sua viagem, não sei até que ponto era voluntária a viagem do herói no Bildungsroman clássico. Talvez também fosse atirado a esta viagem e as suas consequências, por exemplo, por destino e não a começãva por sua própria vonatde. Todavia, de certeza, desempenhou um papel mais activo do que o nosso herói. Por isso, talvez a expressão «romance de formação às avessas» seja demasiado brava, mas «romance de deformação» parece-me adequada e deixa um campo bastante largo de interpretações.

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