quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Quem es tu, Sofia?

Quantas mulheres aparecem n'Os Cus de Judas de António Lobo Antunes? Algumas. Quatro, pelo menos. Obviamente, o enredo das mulheres na vida do narrador não é o motivo central da obra (aliás, qual o é? a guerra? o narrador em si?), mas não é possível ignorar a presença e importância delas.


Em primeiro lugar, há essa mulher misteriosa do bar - a interlocutora silenciosa do narrador, a destinatária do todo (ou, melhor, quase todo) o monólogo dele, a ouvinte muda e paciente.
Em segundo lugar, aparece a mulher (no tempo presente do discurso já ex-mulher) do protagonista. Também não se sabe muito dela. Apaixonaram-se, casaram, logo ele foi para África. Divorciaram-se provavelmente quando voltou.
Não se deve esquecer da filha do narrador, talvez o seu único amor verdadeiro. Nasceu durante a residência do pai em África e tornou-se o objecto constante dos pensamentos e das saudades dele.
Afinal, a mulher nº 4 - a que desperta a minha maior inquietação e curiosidade. Aparece no capítulo S, logo na primeira frase, sob a forma duma apóstrofe «Sofia, eu disse na sala Volto já, e vim aqui, (...) para falar contigo» (Antunes 1984: 153). Já que durante todo o discurso anterior o narrador dirige-se à mulher do bar, não admira que no início o capítulo S faz-nos pensar que finalmente conhecemos o nome da misteriosa companheira. Não admira também a confusão do leitor quando descobre que Sofia, a que o narrador dedica todo o capítulo, é o nome duma negra com que o protagonista tive uma relação em África. Nos braços dela o homem encontrou um tipo de refúgio, abrigo, uma certa segurança e esquecimento. Por isso guarda uns sentimentos carinhosos a ela. Havia entre eles um entendimento sem palavras, perante ela o homem angustiado e farto da guerra sentiu-se à vontade, sentiu-se consolado. Porém, enfim, o narrador conta-nos a sua reacção desumana e cínica da notícia sobre o prendimento dela pela PIDE.

Perturba-me a questão da função de Sofia na narrativa. Porque aparece no texto? Porque só num único capítulo? Porque surge assim, de repente, e na forma da interpelação directa? Porque nessas circumstâncias (o narrador abriga-se na casa de banho tendo deixado a mulher do bar na sala, senta-se na sanita e olhando para si no espelho fala com Sofia, como se falasse com a sua consciência)? E que significa essa "parábola de Sofia"?

2 comentários:

  1. Há aqui muitas coisas boas. É uma boa reflexão que, como tu dizes, tem muito de perturbador. Antes de mais, deixa-me só acrescentar umas coisas mais factuais. Apesar de ser uma mulher que aparece rapidamente, temos ainda a robusta hospedeira da TAP com quem o narrador tenta mas não consegue fazer sexo aquando do regresso a Angola. Mas, claro, não tem nada a ver com a Sofia, que curiosamente aparece no capítulo "S" (o que talvez possa trazer alguma luz à tua entrada seguinte sobre a ordenação dos capítulos). Foi muito bem notada, essa confusão operada pelo narrador que nos leva a pensar que Sofia é a mulher do bar. Uma previsão defraudada com a percepção de que é outra mulher, separada daquela no tempo e no espaço, mas também na relação que estabelece com o narrador? Ao lado da Sofia, incomoda-me muito a personalidade do narrador cínico, incapaz de sentir, impassível. A sua voz, que no livro é o reflexo da sua vida, convence-me mais de que estamos perante um homem que está anestesiado em relação à vida, talvez como forma de protecção por aquilo que passou em Angola. Mas aquilo que me parece cada vez mais que releio o livro é que há uma diferença abismal entre a expressão/verbalização que acontece no bar, que é uma torrente inacabável, e a expressão oral no quotidiano. A mim parece-me que o narrador quase não fala, não comunica, e quando o faz, fá-lo de uma forma curta, cínica, desempenhando o papel de um tipo de homem duro, escondendo muitas vezes o que realmente sente, porque noto muitas vezes contradições entre o que ele diz no bar sobre uma situação e as suas palavras e atitudes nessa mesma situação. Muitas vezes são duas formas opostas - à ternura ou à compaixão da voz no bar, segue-se o cinismo da voz na guerra. Mas noto isso também nos tempos de criança, há um monte de coisas que ele vai acumulando para dentro e que parecem que só no bar começam a sair.

    Mas voltando à Sofia e às mulheres e à sua reacção cínica e rápida ao seu encarceramento pela PIDE, não haverá novamente uma diferença entre o verbalizado e o sentido, palavras que não mostram o que verdadeiramente se sente? ou é a voz fria do rapaz feito homem na guerra como queriam as tias?

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  2. De facto, esqueci-me daquela hospedeira, obrigada pela sua observação.

    Quanto a essa transformação dum rapaz ao homem pela guerra, vou dedicar a ela um post separado.

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