sábado, 16 de outubro de 2010

«(...) é uma ternura ver nascer um livro...»

Não é por acaso que o autor da citação do início do último post é António Lobo Antunes, pois é este o escritor com o qual começámos a nossa viagem pelas tendências actuais da Literatura Portuguesa. Na última aula o Professor mostrou-nos uma entrevista de Rodrigo Guedes de Carvalho com António Lobo Antunes, efectuada em Dezembro de 2003 na televisão SIC.

A entrevista, realizada por ocasião de lançamento do livro Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo, é muito vasta e cheia de conteúdo que abrange vários assuntos. Cada um encontra algo interessante para si. 

Para os que gostam saber os pormenores da vida pessoal dos outros, o escritor (naquela altura de 61 anos) partilha as recordações na sua infância, adolescência e os inícios da sua escrita; as emoções ligadas à velhice dos seus pais e à perda dos amigos que faleceram; as experiências intímas da guerra em África.

O motivo da guerra é, aliás, especialmente interessante, sobretudo de ponto de vista dos largamente concebidos estudos culturais. As experiências da África, embora sem dúvida horríveis e traumáticas, não deixaram no António Lobo Antunes sentimentos de ódio ou desprezo para com esta terra e os povos que a habitam. Tem pena das cidades destruídas de que particularmente gostou. Acha injustificada a interpretação do colonialismo e da guerra como a tentativa de impôr aos povos bárbaros tal chamada civilização, já que os africanos tiveram e têm a sua própria civilização e modo de ser. Reconhece o valor da cultura africana e respeita a sua variedade e diversidade. Apresenta uma atitude sábia perante a homosexualidade e o racismo que percebe como o desconhecimento. Deste modo, as suas opiniões inscrevem-se na corrente pós-moderna vigente, mostrando o seu autor como homem culto, erudito e tolerante.

Isto fica provado também quando analisarmos as reflexões de António Lobo Antunes sobre a arte da escrita, a que é dedicada a maior parte da entrevista. O escritor entreabre as portas da sua "oficina" da escrita, deixando-nos espreitar um bocadinho o seu processo criativo . É mesmo uma "oficina", já que Lobo Antunes está longe de perceber a escrita de modo romântico como um dono e efeito duma inspiração divina. Aproxima-se antes à corrente iniciada por T.S. Eliot que compreende a escrita como uma produção, um ofício que tem a sua própria técnica e que precisa de muita práctica. Como diz o próprio Lobo Antunes: «Não há talentos», é só método, técnica e disciplina que se tem de aprender para poder escrever bem. Atrás de cada livro, por muito espontâneo e natural que pareça, está o trabalho duro do escritor, que é preciso decifrar para perceber a técnica dele. Trabalho duro, mas agradável, porque o autor continua a ter uma relação muito íntima com a sua escrita, vive-a, mas faz o esforço de, depois de acabar, esquece-la para poder escrever outra coisa. Curioso que, mesmo assim, a escrita é sempre uma coisa independente do seu autor e, segundo António Lobo Antunes, nunca se sabe o que se vai escrever.

A escrita é para ele também o processo de aprendizagem, não só das coisas de que escreve, mas também aprendizagem no sentido de tornar-se mais maduro, de fazer progesso. Por isso «a pessoa que tu eras quando escreveste já não és». 

Muito característica é, para mim, a sua posição quanto à relação entre a ficção e a realidade. António Lobo Antunes fala sobre um pacto de incredulidade que consiste em aceitar pelo autor e pelo leitor que o que está escrito não é verdade, mas vão fingir que a é. Este conceito de Lobo Antunes assemelha-se muito com a ideia de Umberto Eco, apresentada no Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), e que o escritor italiano chama de "pacto da suspenção de incredulidade". Outras afinidades entre os dois escritores pode-se vislumbrar em opinião de que o livro contém instruções para o seu leitor e que o autor tem de ensinar os seus leitores a lerem-no. Esta concepção traz à mente o conceito do autor-modelo que constitui, segundo Eco, uma estratégia da obra, um modo de a usar que o leitor-modelo deve realizar.

A propósito disso surge a última lição de Lobo Antunes, nomeadamente significativa em contexto deste blogue, que se refere à arte de ler. Como os leitores, devemos deixar a nossa tendência de adaptar os livros às nossas experiências e às nossas vivências. «(...) temos que partir para os livros com os olhos desprevenidos, temos que partir com uma certa virgindade no olhar», ensina o escritor português.

O texto íntegro da entrevista disponível na página: http://www.ala.nletras.com/entrevistas/SIC122003.htm .

1 comentário:

  1. Acho que é bom termos olhos desprevenidos mas acho que a nossa leitura, pode ser enriquecida por nossa mundo-visão. Por exemplo eu não tinha medo de perguntar o meu avô sobre a sua participação, sobre matar e outros aspectos podemos dizer tabu e a maneira como ele me respondeu foi surpreendente para mim. Ele não lutava para sobreviver, lutava para defender a pátria. A morte que via enchia-o de respeito, não desprezava a vida e as pessoas. Porque a fim somos todos mortais, e todos humanos. A situação da Polónia era diferente, não a que comparar mas acho que compreenderão a minha linha de pensamento ao ler uma das entradas no meu blogue. www.entre-livros.blogspot.com

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