terça-feira, 2 de novembro de 2010

Outra vez a figura da misteriosa mulher - interlocutora muda do protagonista não me deixa em paz. Achei interessante a intepretação dela feita por Nuno Barbosa:

«Atente-se que a "interlocutora" do extenso monólogo do narrador encarna qualquer um que leia a obra: escuta-o (ou pelo menos ouve) e intervém como o leitor o faria, para no fim fechar a porta e o abandonar, como nós fechamos o livro e o esquecemos numa prateleira - todos constituímos acidentais pretextos para uma pontual exposição.» (http://alawebpage.blogspot.com/2010/03/nuno-barbosa-comentario-os-cus-de-judas.html)
Talvez a personagem da mulher que não diz nada, quase não reage, só ouve e enfim abandona o protagonista seja uma projeção do leitor, bastante à maneira pós-moderna de jogos com o leitor.
Porém, surgiu-me ainda outra possibilidade de interpretação (ou se calhar de sobreinterpretação?). A ideia apareceu depois da leitura do comentário sobre a leitura dOs Cus de Judas de José Alexandre Ramos, nomeadamente o trecho seguinte:

«Para além da tragédia pessoal da personagem que monologa com uma mulher, é um dos primeiros gritos de atenção para aquilo que parecia ter passado despercebido no seio da sociedade portuguesa: que homens partiram para uma guerra que não reconheciam como sua, que regressaram com mazelas, a culpa, a vergonha e os remorsos dos seus actos em nome de um conceito de pátria duvidoso. Tudo parecia esquecido ou todos queriam esquecer essa nódoa. Assim, Os Cus de Judas acaba por ser também uma crítica social e política não só a quem urdiu e alimentou o conflito mas também aos novos donos do poder e a uma sociedade indiferente a tudo isso, de um tempo perturbado com o fim dessa guerra e os distúrbios de uma revolução recente.» http://alawebpage.blogspot.com/2010/01/jose-alexandre-ramos-os-cus-de-judas.html
Será possível ler a mulher como uma personificação desta sociedade portuguesa que quer esquecer todas as malezas, que ignora os ex-militantes distorcidos pela guerra e deixa-os sozinhos com os seus tormentos e traumas que lhes impossibilitam de novo entrar nesta realidade? Pois a personagem da mulher é exactamente assim: ouve, ou antes deixa falar, mas não reage, não mostra nenhuma compaixão, até não falando de uma consolação ou vontade de aliviar, ajudar. É como a sociedade - indiferente.

2 comentários:

  1. Boa, para mim esta mulher pode ser também de acordo com os meus comentários anteriores uma terapeuta a quem narrador conta o que lhe perturba, o que lhe causa nojo o que lhe não deixa dormir. Mas por outro lado como diz Andréia Régia Nogueira do Rego o narrador muitas das vezes afirma que a sua historia é uma ficção, e neste ponto começa um jogo burlesco que «intensifica seu aspecto agressivo ao sugerir a impossibilidade da ocorrência, no universo não ficcional, de tamanhos absurdos. Consequentemente, essa estratégia narrativa nega o texto referencial como instrumento eficaz para o questionamento das barbáries humanas, afirmando a insuficiência da realidade »(O poder do Testemunho Literário para Desmascara Autoritarismos )

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  2. A figura da mulher como narratário é, sem dúvida, intrigante, especialmente o seu silêncio, a sua indiferença. As duas hipóteses que sugeres são interessantes e ambas são interpretações significativas que iluminam leituras possíveis da obra. Acrescento algo mais que se me ocorreu durantes as leituras que foi a hipótese de se poder dizer que esta mulher não existe, é um fantasma que só existe na cabeça do narrador, para tentar esconder a sua completa solidão perante o mundo? Que quando se regressa duma experiência com a dele, se está condenado a uma perpétua solidão de onde se apenas sai inventando, escrevendo. Ou de uma forma mais restrita, este monólogo com a mulher representa a sua incapacidade para amar uma mulher. Sabemos que a guerra provocou a separação, a infidelidade, a mentira, o divórcio, a devassidão, a solidão. Será esta mulher, a única forma que ele encontrou para lidar com esta incapacidade de amar? E afinal de contas o que é que ela é em si - trauma de guerra, pura incapacidade sua, amoralidade?
    De qualquer forma, o mais interessante não é tanto quem é a mulher, mas o que ela pode representar para a vida do narrador.

    Anna, podes ser mais clara no teu comentário. Podes acrescentar um comentário teu sobre como o excerto teórico que citas se adequa à tua ideia de terapia, porque não estou a ver como o discurso teórico ajuda a criar uma interpretação significativa?

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