segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O amor, a palavra e a eternidade

Em entrevista a O Primeiro de Janeiro Ana Luísa Amaral disse:
«(...) é um livro sobre o amor humano, nessa medida, ele é necessariamente um livro sobre a efemeridade do amor humano. Há um soneto de Vinícius de Moraes, muito conhecido, que acaba com os versos "que não seja imortal, posto que é chama,/ mas que seja infinito enquanto dure". É justamente a possibilidade de conter o infinito no finito. É isso que diz a "Última Meditação de Camões", em que o poeta se auto-declara como aquele que queima por versos um segundo, ao passo que a palavra arde eternidade por um som. A única coisa que pode tornar o amor infinito é a palavra.» (grifo meu)
O fogo e o campo semântico com ele relacionado, como as palavras arder, queimar, luz, são referências frequentes no livro A Génese do Amor. Outra vez torna-se aqui visível a importância do símbolo nesta poesia, uma vez que, segundo o dicionário de símbolos literários, o fogo significa precisamente, entre outros, a eternidade, o elemento básico, a causa primária, bem como o calor e o amor.
As refêrencias ao fogo aparecem de forma bastante intensa sobretudo nos últimos poemas da colectânea. No "Fala Natércia, no Final", Natércia dirige a Camões as palavras:

«Imprime a fogo
 em verso,
 no que queiras,
 o que além de infinito -» (Amaral 2005: 53).

No poema seguinte, além da referência inicial ao poema camoniano "Amor é um fogo que arde sem se ver" que também remete ao nosso símbolo ("Não é verdade/ o que escrevi um dia,/ pois vê-se o fogo/ arder, doer o resto" [Amaral 2005: 55]), encontramos a resposta de Camões ao apelo de Natércia:

"Não gravarei
 nem escreverei a fogo
 o que quero lembrar,
 porque preciso" (Amaral 2005: 55).

Camões parece tomar uma atitude resignada, como se se rendasse à efemeridade do amor e duvidasse no poder eternizador da palavra. Submete-se ao «esquecimento:/ a mais vulgar/ morada» (Amaral 2005: 56).
O tom parecido ressoa também na "Última meditação de Camões (II)" quando o eu lírico diz:

«(...) as mais comparações (*)
 que aqui eu possa
 não te farão justiça
 nem acerto» (Amaral 2005: 57).

Outra vez encontramos a desilusão e dúvida em sentido da poesia amorosa, como se a descrição do amor à menira de Camões já não tinha força nem lugar hoje em dia.
No entanto, foi a palavra (a palavra lírica sobre o amor) que alimentou «a génese de tudo» (Amaral 2005: 57). E diz Camões à sua palavra:

«Ainda que em silêncio,
 diz-me agora
 de como pode ser
 contentamento
 este fogo de luz:

 cruel morada

 Dá-me outra vez
 em papel brando,
 o mundo:

 Eu: queimando por versos
 um segundo,
 tu, por um som,
 ardendo eternidade» (Amaral 2005: 57-58)

A poesia é capaz de dar todo o mundo numa simples folha de papel; são «as palavras magoadas/ que puderam tornar o fogo frio,/ e dar descanso às almas condenadas» (Luís de Camões "Aquela triste e leda madrugada"). Em poucas palavras, que podem não durar mais do que um som, mas que ardem ao infinito, eterniza-se o amor - por natureza efémero, por palavra eterno.

* outra vez uma referência ao poema de Camões "Amor é um fogo...", que é composto de várias comparações?

AMARAL, Ana Luísa (2005) A Génese do Amor. Porto, Campo das Letras.

2 comentários:

  1. Uma análise sólida que ajuda a iluminar a obra de Ana Luísa Amaral, alinhando três conceitos fundamentais e que constantemente dançam ao longo da obra - amor, palavra e eternidade. Valeria a pena voltar ao poema-pórtico desta obra "topografias em quase dicionário" e ver como/se essa dança já ali se encontra delineada.

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  2. No poema da abertura A.L.Amaral dá nos a chave para toda a sua obra. Esta primeira lição mostra-nos os passos da dança, dança entre os elementos masculinos e femininos que querem unir-se para sempre. Segundo a poetisa a única solução é a palavra que é eterna. E interessante observar a evolução das ferramentas do amor e a sua importancia e duração. Antigamente o que tinha importancia era a palavra, também porque a escrita ainda não era popularizada. Depois com o desenvolvimento da imprensa a palavra escrita e impressa ganhou a importancia. Hoje em dia já não se acredita tanto naquilo que é escrito, o que conta são as acções e os comportamentos. E bom que a poetisa tenta recuperar a importancia da palavra escrita. Porque realmente ela é eterna as palavras ditas ou os comportamentos esquecem-se enquanto a palavra fica para sempre.

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